Spotters: uma tribo em formação
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Spotters: uma tribo em formação
Olá pessoal! Tudo certo?
Eu fiquei com dúvida onde colocar esse texto, creio que esse seja o lugar ideal, caso esteja errado por gentileza o direcionar para o local correto!
Eu acabo de ler em outro fórum esse texto, e achei muito legal compartilhar ele. Quem ja praticou ou pratica, vai se identificar muito com o texto. Ele é meio longo, porém cativante!
Um abraço, e boa leitura!
___________________________________________________________________
Spotters: crazy people?
Spotters: uma tribo em formação
Uma verdadeira multinacional: pessoas que nunca se viram na vida, em dois minutos conversam como dois compadres. Gente que passa horas sob sol escaldante ou frio siberiano de pé, sem comer direito, por períodos que ultrapassam até 12 horas. Pessoas que viajam 20 horas de avião para um país distante e... mal saem do aeroporto. São loucos? Não: são os observadores de aeronaves, trens, barcos e até ônibus: são os spotters.
Esta tribo tem sua origem na Segunda Guerra na Inglaterra. Garotos reuniam-se horas a fio às beiras de estradas de ferro observando as composições. Esta era uma das poucas diversões disponíveis nos anos de ferro do conflito. Ao hobby chamou-se "Trainspotting": os trens que passavam eram "marcados" ou seja, "spotted" pelos garotos, que anotavam seus números em caderninhos. Dos cadernos, evoluiu-se para uma eventual máquina fotográfica aqui e acolá.
No pós-guerra, esses garotos presenciaram uma explosão no tráfego aéreo. Companhias vindas de terras distantes, com nomes e pinturas diferentes, começaram a chamar a atenção. O hobby difundiu-se e conquistou o direito de ser chamado de "aircraft spotting".
Saindo da Grã-Bretanha, o hobby logo conquistou outros países europeus. Hoje, Alemanha, Holanda e Suíça dividem com os Ingleses a paixão pelo hobby. Outro país com um número enorme de praticantes é o Japão. Na Alemanha, vi várias mulheres spotters, espécie rara por aqui. Vi até uma "Oma Spotter", uma vovó spotter: não resisti e fui confirmar. ela me disse que praticava o hobby desde a Segunda Guerra, quando "namorava uns pilotos".
Nos USA o hobby é comparativamente pequeno. Na América do Sul também, o Brasil incluindo-se aí. Porém, se falta público, sobra paixão: nossa fraternidade verde-amarela é das mais fanáticas, embora pequena. A turma mais frequente em São Paulo é formada pelo Polati, Daniel Spat, Barbosa, Renato, João Ricardo, Robert, Vitor, Danielzinho, Masagão, Barros, Flávio, Paulo Berger...
Existem, claro, diferentes matizes de malucos: há aqueles que simplesmente anotam em caderninhos as matrículas - os spotters clássicos. Há ainda os que apenas observam de binóculos, lunetas ou a olho nú, muitas vezes de ouvidos colados à radinhos que sintonizam as freqüências das torres.
Finalmente, entre os fotógrafos, há subdivisões. Os insiders - a elite que fotografa dentro de pistas e pátios de aeroportos - e os outsiders - a maioria, que por não ter acesso aos pátios, observa de fora do aeroporto ou de terracinhos e "observation decks". Em ambos os casos, os fotógrafos ainda apresentam sub-sub-divisões: há aqueles que gostam de fotos de ação (pousos e decolagens), outros que só gostam de fotos dos aviões de lado, outros que não podem ver pessoas em volta dos aviões. Um cubano-americano de Miami, Crazy Jorge, leva a taça: não pode haver sequer UMA - nenhuminha mesmo - NUVEM na foto. Descartada: ou o céu é azul total ou não tem foto.
Verdadeiros e falsos spotters
Isso é fácil de reconhecer: o verdadeiro spotter acorda cedo. Ele sacrifica sua "vida social" pelo hobby e faz tudo para estar "lá" na hora certa e no dia certo. Faça sol ou faça sol.
Um exemplo ilustra bem o desmedido amor do verdadeiro spotter. Certo dia, estava eu indo para um churrasco no Helvetia Polo em Indaiatuba. O caminho me fazia passar em frente ao aeroporto de Viracopos. De longe, da estrada, conferia o pátio, sempre de olho em alguma novidade.
Desnecessário dizer que minha câmera viajava de "stand-by" no porta-mala, pronta para alguma eventualidade. Regra número 1 do bom spotter: como o cartão de crédito diz, "nunca saia de casa sem ela".
Pois bem: de longe vi uma aeronave estranha. Desviei e fui conferir: nada menos que um raríssimo (apenas 10 construídos) Shorts Belfast estava no pátio. Nessa época, anos pré-celularianos, corri para o orelhão mais próximo e liguei para São Paulo para meu bom e saudoso amigo Alberto Fortner. A transcrição do diálogo explica tudo:
-Alberto, bom dia, como vai? É o Gianfranco.
-Tudo bem, Gianfranco? O que manda?
-Você está ocupado, Alberto?
-Sim, estou saindo para comprar umas coisas que minha mulher pediu, e depois temos um almoço. Porquê?
-Porque queria te avisar que tem um Shorts Belfast parado aqui em Viracopos.
-Estarei aí em 50 minutos.
Essa compulsão demoníaca é o que separa o spotter do ser humano médio: ninguém pode entender o nível de devoção e paixão que une essa fraternidade ao redor do mundo. Já fiz e faço amigos para sempre em cercas de aeroportos. Chineses, australianos, japoneses, europeus, argentinos, malteses, zambianos, amigos com os quais me correspondo. Gente que de um dia para outro entra em meu coração, unidos pela mesma paixão. O que a ONU tenta fazer a décadas, um DC-8 faz em segundos.
Saudade do começo
Como spotter mesmo, comecei em 1975, ano das minhas primeiras anotações de tráfego: tenho até hoje as folhas, que são guardadas como tesouro. Uma tarde em Congonhas, em março de 1975, mostra bem: estes foram alguns dos pousos:
PP-CJE, SDS, VLD, VLE, VJW, SME, VLV, CP-861, LV-LIV, PP-SMA, PP-SMG, ZP-CBY, PP-CJC, PP-SRH, PP-VJL, PT-TBF, PT-TCB.
Minha primeira "máquina fotográfica" foi uma Olympus Trip, dessas que dobram as fotos tiradas, dividindo os negativos. Somente em 1980 comprei minha primeira câmera séria (uma Canon AV-1) com teleobjetivas que me permitiram fazer meus primeiros registros com alguma qualidade. Não parei mais, até chegar hoje a aproximadamente 200.000 fotos e slides.
Spotting também se aprende
Como tudo na vida, a prática faz a perfeição. Segue abaixo o decálogo do spotter profissional, aprendido do pior jeito possível: tentativa e erro.
1-Sempre, sempre, sempre leve sua câmara ao aeroporto. Naquele dia que você for apenas levar sua tia gorda e patusca para viajar, haverá um Concorde com a pintura da Pantanal estacionado em Congonhas...
2-Planeje e confira antes de sair de casa. Filmes? Baterias? Regulagem da câmera? Este último é um erro comum: trocar de filme e esquecer de regular o ASA da câmera. Confira tudo de novo depois de chegar ao local: às vezes, ao manusear a câmera, você pode desregular alguma coisa. E nunca, nunca esqueça de levar baterias - uma na câmera, outra na sacola. Economize em tudo, menos nas baterias. E leve mais filme do que você precisa. Nunca se sabe.
3-Tem que dar duro. A boa foto, a boa seção de spotting é diretamente proporcional ao esforço. Acordar de madrugada, andar 4 km com o equipamento nas costas, ficar com sono, frio, tédio, medo, são os ingredientes básicos para conseguir "aquele 727 que sempre me escapava..."
4-Vai ficar muito tempo? Planeje sua alimentação. É saudável, mais barato e evita o clássico "puxa-veio-o-tal-avião-justo-na-hora-que-eu-fui-comer." Traga comida e bebida de casa se for necessário.
5-Vista-se adequadamente Já tive que interromper seções de spotting porque estava morrendo de frio ou de calor. Planeje, informe-se. Isto é aviação: não se decola sem estudar as cartas e alternativas.
6-Cubra sua cabeça. Como o bom spotter fotografa em dia de sol, excesso de exposição ao astro-rei provoca o envelhecimento precoce, câncer-de-pele, pés de galinha e outros efeitos colaterais. Além disso, não conheço nenhum spotter bronzeado uniformemente. Você não quer fazer um mal papel na piscina/praia/clube, não é? Um bom chapéu e protetor solar são ítens de primeira necessidade ao spotter experiente.
7-Nunca foque demais sua atenção. Em aeroportos muito movimentados, é comum o spotter inexperiente concentrar toda a sua atenção numa determinada aeronave e perder algo que passa/decola/pousa ao lado. Radar ligado ao máximo!
8-Respeite as autoridades. Você é um suspeito "par excellence" hoje em dia, especialmente após 11 de setembro. Explique polidamente o que veio fazer, porquê veio fazer, etc. Bons modos nunca atrapalharam ninguém. Se puder leve consigo algumas fotos que você já fez, para comprovar sua não-filiação ao Al-Qaeda.
9-Informe-se em relação ao tráfego. Estude as aeronaves que deverão pousar e decolar no dia em que você pretende fotografar.
10-Nunca pronuncie aquela palavra começada por "C" e terminada por "huva". Atrai frentes frias, tufões, tornados e afins. Mentalize que irá fazer sol. Fará.
Alegrias e tristezas de um spotter
Falem o que vocês quiserem, filisteus: não conheci um spotter que não fosse acima da média. O fato
de estudar um tema desenvolve sua cuca. E você quase que obrigatoriamente precisa entender um pouco de inglês. Isso sem falar no conhecimento de geografia e história que acabam se misturando com o hobby. Pergunte aos universitários qual a capital da Mongólia. Nada. Pergunte então ao spotter: não só responderá, como vai te informar a companhia aérea nacional, a pintura nova-que ele não gostou- e ainda vai te perguntar se você tem uma fotinho sobrando daquele Twin Otter...
Mais: você viaja, glória suprema da existência humana: conhecer outros povos, línguas, costumes, raças, culinárias. Experimentar o inverno do Alaska, o calor de Johannesburg, a altitude de La Paz, a civilização de Londres, a hospitalidade japonesa. Se você é casado ou comprometido, leve sua consorte (a palavra deve ter aí sua origem). Você vai para o aeroporto, ela vai pro shopping ou para a praia. À noite, você conta pra ela quantos DC-10 você registrou e pede uma massagem nos ombros cansados de carregar os equipamentos... Existem lá fora até agências de turismo especializadas em organizar viagens para spotters.
Mas talvez a grande alegria mesmo seja a de se encontrar um bando de gente afinada com você, seus companheiros spotters. Essa fraternidade mundial fala a mesma língua: a paixão pelos aviões. Outra alegria é poder olhar o céu, prestar atenção nos seus sinais, nuances, cores. Quantas vezes presenciei majestosas alvoradas e poentes de fogo (Poético este texto... parece até coisa do imortal José Sarney: "Marimbondos e Poentes de Fogo") nos aeroportos onde fotografei?
Quanto às tristezas... estão relacionadas com a impossibilidade de se praticar o hobby. Principalmente depois de 11 de setembro, em algumas regiões do mundo, especialmente USA e alguns países europeus e asiáticos, "spotting" entrou para a lista negra das "otoridades". Ao invés de procurar combater e prevenir os verdadeiros causadores de tantas tragédias, optaram pela solução mais fácil, como sempre: deram de proibir a presença de spotters nas cercanias de aeroportos, fechar terracinhos (você já ouvi falar de algum atentado realizado a partir de um terraço?) e combater quem na verdade, poderia ajudar. Ou um verdadeiro terrorista não ficaria mais à vontade para atuar sem testemunhas, penetrando pelas cercas ora esvaziadas dos aeroportos?
E existem os encontros infelizes com os "cana-brava". Os meus casos particulares são vários. Citando alguns: arma apontada para minha cabeça por um policial em Saint Louis (1997), metralhadora na cara em Bogotá (1997), assaltado por um policial no México(2001)-leia mais na matéria sobre o aeroporto-, fichado pela polícia de Miami(2002) e a mais espetacular: cercado por cima por um helicóptero da Polizia Italiana e pela frente por um carro de assalto dos Carabinieri, no aeroporto de Roma em 1998 (deu pra fazer uma fotinho só do helicóptero). Já me acostumei.
Risadinhas, muxoxos, olhares de esguelha.
O spotter é um ser solitário. Discriminado entre seus pares, é visto com velada ironia ou blatante desrespeito por seus companheiros da raça humana.
Vem um colega de trabalho e diz: Bom dia, Gianfranco! Foi fotografar aviãozinho de novo?
Ou então, um cunhado mais espirituoso: "O que você viu hoje, hem? O Zeppelim? O 14-bis? O Concorde? "
Evite responder que você viu a mãe do seu interlocutor de perna aberta. Comentários como este só servem para aumentar a deselegância da situação. Mude de assunto. Passe por cima no nível 390. Esses Bozos, míseros pobres-diabos desprovidos de paixão, jamais compreenderão o efeito psicotrópico que existe em se descobrir um novo prefixo, fotografar uma nova pintura, registar um novo tipo ou companhia aérea. Deixa prá lá. Lembre-se que o Tom Jobim vendia 20 mil discos e o Só Pra Contrariar 20 milhões de CDs. Coisas boas são para poucos.
Retruque perguntando quem foi eliminado da Casa dos Artistas, se a Feitiçeira está mais marombada, se o "Curingão" e o Flamengo precisam trocar de técnico... Aí sim, você verá o olhar rútilo de satisfação do seu interlocutor, que, finalmente abordando coisas "normais", terá assunto.
Enquanto ele animadamente der as respostas, seu pensamento decolará para Heathrow, Los Angeles, Congonhas, Haneda.
Chega de papo. Vamos pro aeroporto?
Gianfranco Beting
JetSite
Via CR.
Eu fiquei com dúvida onde colocar esse texto, creio que esse seja o lugar ideal, caso esteja errado por gentileza o direcionar para o local correto!
Eu acabo de ler em outro fórum esse texto, e achei muito legal compartilhar ele. Quem ja praticou ou pratica, vai se identificar muito com o texto. Ele é meio longo, porém cativante!
Um abraço, e boa leitura!
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Spotters: crazy people?
Spotters: uma tribo em formação
Uma verdadeira multinacional: pessoas que nunca se viram na vida, em dois minutos conversam como dois compadres. Gente que passa horas sob sol escaldante ou frio siberiano de pé, sem comer direito, por períodos que ultrapassam até 12 horas. Pessoas que viajam 20 horas de avião para um país distante e... mal saem do aeroporto. São loucos? Não: são os observadores de aeronaves, trens, barcos e até ônibus: são os spotters.
Esta tribo tem sua origem na Segunda Guerra na Inglaterra. Garotos reuniam-se horas a fio às beiras de estradas de ferro observando as composições. Esta era uma das poucas diversões disponíveis nos anos de ferro do conflito. Ao hobby chamou-se "Trainspotting": os trens que passavam eram "marcados" ou seja, "spotted" pelos garotos, que anotavam seus números em caderninhos. Dos cadernos, evoluiu-se para uma eventual máquina fotográfica aqui e acolá.
No pós-guerra, esses garotos presenciaram uma explosão no tráfego aéreo. Companhias vindas de terras distantes, com nomes e pinturas diferentes, começaram a chamar a atenção. O hobby difundiu-se e conquistou o direito de ser chamado de "aircraft spotting".
Saindo da Grã-Bretanha, o hobby logo conquistou outros países europeus. Hoje, Alemanha, Holanda e Suíça dividem com os Ingleses a paixão pelo hobby. Outro país com um número enorme de praticantes é o Japão. Na Alemanha, vi várias mulheres spotters, espécie rara por aqui. Vi até uma "Oma Spotter", uma vovó spotter: não resisti e fui confirmar. ela me disse que praticava o hobby desde a Segunda Guerra, quando "namorava uns pilotos".
Nos USA o hobby é comparativamente pequeno. Na América do Sul também, o Brasil incluindo-se aí. Porém, se falta público, sobra paixão: nossa fraternidade verde-amarela é das mais fanáticas, embora pequena. A turma mais frequente em São Paulo é formada pelo Polati, Daniel Spat, Barbosa, Renato, João Ricardo, Robert, Vitor, Danielzinho, Masagão, Barros, Flávio, Paulo Berger...
Existem, claro, diferentes matizes de malucos: há aqueles que simplesmente anotam em caderninhos as matrículas - os spotters clássicos. Há ainda os que apenas observam de binóculos, lunetas ou a olho nú, muitas vezes de ouvidos colados à radinhos que sintonizam as freqüências das torres.
Finalmente, entre os fotógrafos, há subdivisões. Os insiders - a elite que fotografa dentro de pistas e pátios de aeroportos - e os outsiders - a maioria, que por não ter acesso aos pátios, observa de fora do aeroporto ou de terracinhos e "observation decks". Em ambos os casos, os fotógrafos ainda apresentam sub-sub-divisões: há aqueles que gostam de fotos de ação (pousos e decolagens), outros que só gostam de fotos dos aviões de lado, outros que não podem ver pessoas em volta dos aviões. Um cubano-americano de Miami, Crazy Jorge, leva a taça: não pode haver sequer UMA - nenhuminha mesmo - NUVEM na foto. Descartada: ou o céu é azul total ou não tem foto.
Verdadeiros e falsos spotters
Isso é fácil de reconhecer: o verdadeiro spotter acorda cedo. Ele sacrifica sua "vida social" pelo hobby e faz tudo para estar "lá" na hora certa e no dia certo. Faça sol ou faça sol.
Um exemplo ilustra bem o desmedido amor do verdadeiro spotter. Certo dia, estava eu indo para um churrasco no Helvetia Polo em Indaiatuba. O caminho me fazia passar em frente ao aeroporto de Viracopos. De longe, da estrada, conferia o pátio, sempre de olho em alguma novidade.
Desnecessário dizer que minha câmera viajava de "stand-by" no porta-mala, pronta para alguma eventualidade. Regra número 1 do bom spotter: como o cartão de crédito diz, "nunca saia de casa sem ela".
Pois bem: de longe vi uma aeronave estranha. Desviei e fui conferir: nada menos que um raríssimo (apenas 10 construídos) Shorts Belfast estava no pátio. Nessa época, anos pré-celularianos, corri para o orelhão mais próximo e liguei para São Paulo para meu bom e saudoso amigo Alberto Fortner. A transcrição do diálogo explica tudo:
-Alberto, bom dia, como vai? É o Gianfranco.
-Tudo bem, Gianfranco? O que manda?
-Você está ocupado, Alberto?
-Sim, estou saindo para comprar umas coisas que minha mulher pediu, e depois temos um almoço. Porquê?
-Porque queria te avisar que tem um Shorts Belfast parado aqui em Viracopos.
-Estarei aí em 50 minutos.
Essa compulsão demoníaca é o que separa o spotter do ser humano médio: ninguém pode entender o nível de devoção e paixão que une essa fraternidade ao redor do mundo. Já fiz e faço amigos para sempre em cercas de aeroportos. Chineses, australianos, japoneses, europeus, argentinos, malteses, zambianos, amigos com os quais me correspondo. Gente que de um dia para outro entra em meu coração, unidos pela mesma paixão. O que a ONU tenta fazer a décadas, um DC-8 faz em segundos.
Saudade do começo
Como spotter mesmo, comecei em 1975, ano das minhas primeiras anotações de tráfego: tenho até hoje as folhas, que são guardadas como tesouro. Uma tarde em Congonhas, em março de 1975, mostra bem: estes foram alguns dos pousos:
PP-CJE, SDS, VLD, VLE, VJW, SME, VLV, CP-861, LV-LIV, PP-SMA, PP-SMG, ZP-CBY, PP-CJC, PP-SRH, PP-VJL, PT-TBF, PT-TCB.
Minha primeira "máquina fotográfica" foi uma Olympus Trip, dessas que dobram as fotos tiradas, dividindo os negativos. Somente em 1980 comprei minha primeira câmera séria (uma Canon AV-1) com teleobjetivas que me permitiram fazer meus primeiros registros com alguma qualidade. Não parei mais, até chegar hoje a aproximadamente 200.000 fotos e slides.
Spotting também se aprende
Como tudo na vida, a prática faz a perfeição. Segue abaixo o decálogo do spotter profissional, aprendido do pior jeito possível: tentativa e erro.
1-Sempre, sempre, sempre leve sua câmara ao aeroporto. Naquele dia que você for apenas levar sua tia gorda e patusca para viajar, haverá um Concorde com a pintura da Pantanal estacionado em Congonhas...
2-Planeje e confira antes de sair de casa. Filmes? Baterias? Regulagem da câmera? Este último é um erro comum: trocar de filme e esquecer de regular o ASA da câmera. Confira tudo de novo depois de chegar ao local: às vezes, ao manusear a câmera, você pode desregular alguma coisa. E nunca, nunca esqueça de levar baterias - uma na câmera, outra na sacola. Economize em tudo, menos nas baterias. E leve mais filme do que você precisa. Nunca se sabe.
3-Tem que dar duro. A boa foto, a boa seção de spotting é diretamente proporcional ao esforço. Acordar de madrugada, andar 4 km com o equipamento nas costas, ficar com sono, frio, tédio, medo, são os ingredientes básicos para conseguir "aquele 727 que sempre me escapava..."
4-Vai ficar muito tempo? Planeje sua alimentação. É saudável, mais barato e evita o clássico "puxa-veio-o-tal-avião-justo-na-hora-que-eu-fui-comer." Traga comida e bebida de casa se for necessário.
5-Vista-se adequadamente Já tive que interromper seções de spotting porque estava morrendo de frio ou de calor. Planeje, informe-se. Isto é aviação: não se decola sem estudar as cartas e alternativas.
6-Cubra sua cabeça. Como o bom spotter fotografa em dia de sol, excesso de exposição ao astro-rei provoca o envelhecimento precoce, câncer-de-pele, pés de galinha e outros efeitos colaterais. Além disso, não conheço nenhum spotter bronzeado uniformemente. Você não quer fazer um mal papel na piscina/praia/clube, não é? Um bom chapéu e protetor solar são ítens de primeira necessidade ao spotter experiente.
7-Nunca foque demais sua atenção. Em aeroportos muito movimentados, é comum o spotter inexperiente concentrar toda a sua atenção numa determinada aeronave e perder algo que passa/decola/pousa ao lado. Radar ligado ao máximo!
8-Respeite as autoridades. Você é um suspeito "par excellence" hoje em dia, especialmente após 11 de setembro. Explique polidamente o que veio fazer, porquê veio fazer, etc. Bons modos nunca atrapalharam ninguém. Se puder leve consigo algumas fotos que você já fez, para comprovar sua não-filiação ao Al-Qaeda.
9-Informe-se em relação ao tráfego. Estude as aeronaves que deverão pousar e decolar no dia em que você pretende fotografar.
10-Nunca pronuncie aquela palavra começada por "C" e terminada por "huva". Atrai frentes frias, tufões, tornados e afins. Mentalize que irá fazer sol. Fará.
Alegrias e tristezas de um spotter
Falem o que vocês quiserem, filisteus: não conheci um spotter que não fosse acima da média. O fato
de estudar um tema desenvolve sua cuca. E você quase que obrigatoriamente precisa entender um pouco de inglês. Isso sem falar no conhecimento de geografia e história que acabam se misturando com o hobby. Pergunte aos universitários qual a capital da Mongólia. Nada. Pergunte então ao spotter: não só responderá, como vai te informar a companhia aérea nacional, a pintura nova-que ele não gostou- e ainda vai te perguntar se você tem uma fotinho sobrando daquele Twin Otter...
Mais: você viaja, glória suprema da existência humana: conhecer outros povos, línguas, costumes, raças, culinárias. Experimentar o inverno do Alaska, o calor de Johannesburg, a altitude de La Paz, a civilização de Londres, a hospitalidade japonesa. Se você é casado ou comprometido, leve sua consorte (a palavra deve ter aí sua origem). Você vai para o aeroporto, ela vai pro shopping ou para a praia. À noite, você conta pra ela quantos DC-10 você registrou e pede uma massagem nos ombros cansados de carregar os equipamentos... Existem lá fora até agências de turismo especializadas em organizar viagens para spotters.
Mas talvez a grande alegria mesmo seja a de se encontrar um bando de gente afinada com você, seus companheiros spotters. Essa fraternidade mundial fala a mesma língua: a paixão pelos aviões. Outra alegria é poder olhar o céu, prestar atenção nos seus sinais, nuances, cores. Quantas vezes presenciei majestosas alvoradas e poentes de fogo (Poético este texto... parece até coisa do imortal José Sarney: "Marimbondos e Poentes de Fogo") nos aeroportos onde fotografei?
Quanto às tristezas... estão relacionadas com a impossibilidade de se praticar o hobby. Principalmente depois de 11 de setembro, em algumas regiões do mundo, especialmente USA e alguns países europeus e asiáticos, "spotting" entrou para a lista negra das "otoridades". Ao invés de procurar combater e prevenir os verdadeiros causadores de tantas tragédias, optaram pela solução mais fácil, como sempre: deram de proibir a presença de spotters nas cercanias de aeroportos, fechar terracinhos (você já ouvi falar de algum atentado realizado a partir de um terraço?) e combater quem na verdade, poderia ajudar. Ou um verdadeiro terrorista não ficaria mais à vontade para atuar sem testemunhas, penetrando pelas cercas ora esvaziadas dos aeroportos?
E existem os encontros infelizes com os "cana-brava". Os meus casos particulares são vários. Citando alguns: arma apontada para minha cabeça por um policial em Saint Louis (1997), metralhadora na cara em Bogotá (1997), assaltado por um policial no México(2001)-leia mais na matéria sobre o aeroporto-, fichado pela polícia de Miami(2002) e a mais espetacular: cercado por cima por um helicóptero da Polizia Italiana e pela frente por um carro de assalto dos Carabinieri, no aeroporto de Roma em 1998 (deu pra fazer uma fotinho só do helicóptero). Já me acostumei.
Risadinhas, muxoxos, olhares de esguelha.
O spotter é um ser solitário. Discriminado entre seus pares, é visto com velada ironia ou blatante desrespeito por seus companheiros da raça humana.
Vem um colega de trabalho e diz: Bom dia, Gianfranco! Foi fotografar aviãozinho de novo?
Ou então, um cunhado mais espirituoso: "O que você viu hoje, hem? O Zeppelim? O 14-bis? O Concorde? "
Evite responder que você viu a mãe do seu interlocutor de perna aberta. Comentários como este só servem para aumentar a deselegância da situação. Mude de assunto. Passe por cima no nível 390. Esses Bozos, míseros pobres-diabos desprovidos de paixão, jamais compreenderão o efeito psicotrópico que existe em se descobrir um novo prefixo, fotografar uma nova pintura, registar um novo tipo ou companhia aérea. Deixa prá lá. Lembre-se que o Tom Jobim vendia 20 mil discos e o Só Pra Contrariar 20 milhões de CDs. Coisas boas são para poucos.
Retruque perguntando quem foi eliminado da Casa dos Artistas, se a Feitiçeira está mais marombada, se o "Curingão" e o Flamengo precisam trocar de técnico... Aí sim, você verá o olhar rútilo de satisfação do seu interlocutor, que, finalmente abordando coisas "normais", terá assunto.
Enquanto ele animadamente der as respostas, seu pensamento decolará para Heathrow, Los Angeles, Congonhas, Haneda.
Chega de papo. Vamos pro aeroporto?
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