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Cruzeiro 484

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Mensagem por Amilckar Ter 15 Nov 2011, 12:35

Flight Report Especial: Cruzeiro 484

Cruzeiro 484 1d
Texto e fotos: Contato Radar

Não foi exatamente uma noite de sono como eu gostaria. Lembro-me que naquela madrugada muitas coisas passavam pela minha cabeça, num ritmo alucinante que jamais havia visto,
todavia, não acredito que outro piloto teria reação diferente se
estivesse no meu lugar, sabendo que logo pela manhã estaria realizando o
seu primeiro vôo como tripulante da Cruzeiro do Sul.

Mesmo sonolento, foi com enorme satisfação que coloquei nos ombros as minhas divisas de co-piloto, que
eram mais parecidas com aquelas usadas por um Capitão de Corveta da nossa Marinha do que com o padrão adotado pelas outras empresas aéreas brasileiras. Ajeitei na cabeça o quepe branco com o tradicional emblema do Condor, e enquanto andava pelo pátio do Aeroporto de Congonhas, no
meio do alvoroço das operações matinais, parei por um instante ao perceber que dali para frente estaria do lado de cá da famosa “Praia dos Paulistanos”, um lugar que havia freqüentado por tantos anos e que
também me deu a chance, num dia perdido no tempo, de sentir o cheiro de querosene queimado que partia dos motores do então maior avião da Cruzeiro, o Caravelle. Eram tempos de muitas dificuldades para se
conseguir um emprego de piloto de linha aérea, porém, bem a minha frente, ostentando o prefixo PP-CJP, encontrava-se a minha recompensa.

Hoje, quando me recordo dessas passagens, não consigo deixar de rir “daquele” garoto desajeitado, que
mal havia passado a barreira dos 20 anos de idade, e com o presente de boas-vindas da escala: um vôo 484. Para muitos antigões daqueles tempos, que reclamavam tanto quanto os atuais, isso era apenas um sinal do que eu deveria esperar como rotina, ao fazer parte do quadro de pilotos do
Boeing 737-200. É claro que no ponto de vista de um co-piloto de primeira viagem, como era o meu caso, tudo era novidade e certamente ainda era cedo para reclamar de uma programação que estava saindo num
sábado ensolarado para realizar várias escalas até chegar em Manaus, e que depois seguiria nos demais dias a Belém, Caiena e Paramaribo, antes de retornar de passageiro a bordo de um Boeing 707 da Varig.

Do sudeste ao norte, pelo centro-oeste...

“Um belo dia sou chamado
pelo chefe do serviço rádio da Condor, para ficar ciente que eu fora
indicado para tomar parte num vôo de reconhecimento e ensaio para a rota
aérea entre o Estado de Mato Grosso e o Território Federal do Acre ...
Partimos do Rio de Janeiro no dia 9 de abril de 1936, quinta-feira
santa, no avião Taquari, um Junker W-34 ...Decolamos às 09:15, rumo ao
Campo de Marte, que era o primeiro lance da nossa jornada.”


Depoimento
de Durval Pinheiro Barros, radiotelegrafista do Syndicato Condor
(Trechos do livro “Breve História da Aviação Comercial Brasileira”, do
Cmte. Aldo da Costa Pereira).

Os Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul podem ser considerados tão pioneiros quanto aos que foram prestados pela Varig. Desde os anos 30, ainda ostentado o nome Syndicato Condor, a Cruzeiro vinha explorando diversas rotas pelo centro-oeste e norte do país, concorrendo inclusive com a Panair do Brasil, até absorver algumas de suas linhas e aeronaves em 1965.

No entanto, a designação SC484 surgiu após a sua fusão com a Varig, em 1975. Até então, ele era um vôo que vinha sendo feito pelo Caravelle (o SC102, às 3as e sábados), seguindo pelo mesmo percurso que foi transferido posteriormente ao B737-200, uma aeronave moderníssima para os padrões da época e que chegou com a missão de substituir o elegante jato puro francês e para voar para muitos destinos operados pelos DC-3, YS-11, Avro e L188, contribuindo para acabar com a “Geração da Hélice” nas duas companhias, com exceção da Ponte Aérea. Pois é, de lá para cá se passaram quase 40 carnavais dos
tempos das facilidades do “Credivarig”, do “Cruzeiro a prazo” e do slogan: “Voar agora é mais fácil do que nunca”.

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Mesmo após a integração das duas empresas, os dois nomes permaneceram simultaneamente em atividade por quase duas décadas. Cada uma possuía o seu quadro de tripulantes, pelo
menos até o início dos anos 80, quando começou a ocorrer a junção dos comissários de bordo. Os pilotos continuaram voando separadamente, mas não era necessário que aeronaves e numeração de vôos correspondessem ao uniforme. Em 1987 finalmente houve a (con)fusão de quadro e senioridade
dos tripulantes técnicos, formando-se o “Esquadrão 64”, que era o número correspondente ao princípio da matrícula designada pela Varig aos pilotos da Cruzeiro em processo de transferência.

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Propaganda de revista e Jingle da época da fusão, uma melodia criada por Archimedes Messina, com produção da Sonotec Clique aqui para ouvi-la...

Manaus de 6 dias, começando com o voo...

Como logo acabei descobrindo, a fama do “Quatro-Oito-Quatro” tinha suas razões, porque ele não era um
simples vôo. É possível dizer que por um bom tempo, para o pessoal do 737, ele era a referência das programações que saiam do Rio ou São Paulo e rumavam ao norte do nosso território.

Pelos idos dos anos 80, exceto o “Camburão” – o RG400, do Rio para Brasília – e mais um ou outro, todos
os vôos que começavam no sul do país com os dígitos 3 ou 4 mais alguma coisa faziam com que o avião ficasse hipnotizado e seguisse cada vez mais em direção a linha do Equador. Eram sinônimos de escalas que mantinham o tripulante rodando pelo norte por algum tempo, em chaves de
vôos que despertavam várias reações, dependendo do estado de ânimo, de quantos dias seriam necessários ficar longe de casa ou de quantas viagens semelhantes haviam sido designadas num único mês. E além de tudo isso, no mês seguinte começava tudo de novo. E no ano seguinte também.
Não havia trégua.

Além do Rio de Janeiro, a Cruzeiro teve por algum tempo uma base de pilotos em Manaus, que foi desativada, mas na década de 80, devido à movimentação de vôos pela região, a Varig
voltou a implantar um baseamento de comissários de bordo.

Galeão, 7 horas da manhã...

Houve um tempo que viajar de avião não significava complicação, para os passageiros e tripulantes.

Sendo um dos primeiros vôos da manhã, a aeronave que sairia para São Paulo geralmente estava estacionada no portão de embarque que chamávamos de pole position (posição zero-zero),
que era aquele que ficava mais próximo do prédio da Infraero. Para os tripulantes isso era muito bom, porque era rápido caminhar do D.O. (Despacho Operacional dos Tripulantes) pelo pátio até o avião. E o
interessante é que o sentido inverso poderia ser usado por aqueles que chegavam de uma viagem doméstica. No caso dos vôos internacionais, também era mais prático, porque as malas eram deixadas num container com a numeração do vôo e os tripulantes podiam se deslocar à aeronave sem
passar pelo setor de imigração. Não havia inspeção de bagagens, despachadas ou de mão, e no Santos Dumont o próprio tripulante se encarregava de colocar suas malas no “porão” do Electra, e de retirá-las
na chegada, em Congonhas.

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Entretanto, vieram às mudanças ao longo dos anos. Certo dia, no Galeão, a tranqüilidade que existia e que todos estavam acostumados – que era ir da rua ao pátio, mesmo sem uniforme, e quando muito com uma breve parada para a conferência do guarda para saber quem era quem, entre uma ou outra bocejada – foi interrompida, quando resolveram instalar catracas na entrada do prédio da Infraero.
Habilmente transformaram a simplicidade numa verdadeira encrenca, e a partir daquele momento, para as autoridades, o tripulante passou de mocinho para bandido. Quem queria ir apenas até o D.O. precisava se
sujeitar a um verdadeiro ritual de identificação e autorização. E não foi somente isso, pois para completar o cerco (ou circo), fecharam o portão que dava acesso ao pátio e todos deveriam seguir via terminal de
passageiros, inclusive tendo de passar por outra catraca, que invariavelmente não dava autorização de liberação de saída (sim, para sair, não para entrar) ... uma coisa de louco. E hoje é aquela ladainha
que estamos habituados.

Mas voltando ao 484, no primeiro trecho os assentos eram geralmente ocupados em boa parte por tripulantes a serviço que se deslocavam a São Paulo, para cumprir outras programações
ou retornar à base. O tempo da viagem durava menos de uma hora, mesmo assim era realizado um rápido serviço de bordo.

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Carta de aproximação radar de Congonhas do tempo do Caravelle e “à prova de café derramado”. Modernismo? Em termos. No final dos anos 70, na terminal de SP, entre 19
NDBs existiam apenas 3 VORs.


Chegando a São Paulo, o pessoal que havia feito o primeiro trecho geralmente desembarcava na correria para prosseguir em outra programação. Para o vôo continuar até Manaus, devido à limitação de jornada de trabalho, outra equipe completa assumia a partir dali.

Em Congonhas era normal presenciar certo frenesi. E o mesmo continuou se repetindo em Guarulhos, com um agravante: em dias de nevoeiro não havia tumulto, mas caos. Além da incessante circulação de “satânicos” (apelido dado pelos tripulantes ao pessoal da SATA), dos caminhões de comissaria, dos aviões que mantinham uma constante trilha sonora de turbinas Pratt & Whitney, acompanhada
do Allison de algum Electra, e de quebra um Bokomoko com seu estridente Rolls-Royce Dart, a freqüência de comunicação interna da companhia era recheada de perguntas do tipo “em que posição está o 342?”, “já saiu o Porto Alegre?”, “manda um passe para a aeronave?”, “D.O., cadê a Kombi?”.

Devido à quantidade de vôos na região de Manaus (Manáus ou Mãnaus, conforme a interessante pronúncia regional de cada um), geralmente dois 737 ficavam praticamente fixos perambulando
pelo norte do país por vários dias, até que outros chegassem para substituí-los. Essas aeronaves tinham de suportar a “batida” de idas e vindas, de operações contínuas sob altas temperaturas e forte
concentração de umidade do ar. Muitas vezes, enquanto a tripulação do 484 seguia ao hotel, o avião que esteve voando o dia inteiro ainda prosseguia, por exemplo, num bate e volta a Boa Vista ou voava a Belém,
com escala em Trombetas e Santarém, ou, com sorte, voava a Barbados, com escala em Piarco. Dessa forma, era imprescindível convocar para essas maratonas equipamentos em boas condições técnicas, porque, por exemplo, no caso da inoperância da APU, era desanimador sair para essas viagens
sabendo que o interior da aeronave seria refrigerado ao longo do dia com uma brisa quente que invadia a cabine quando as janelas e as portas eram abertas nas escalas. Ninguém suportava.

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Do Dornier Wal ao Airbus. O A300B4 foi o último e o maior avião operado com as cores da Cruzeiro. Nessa foto, o CLB não realizava o 484, mas também seguia a Manaus, no
SC300, que decolava de Congonhas às 13:45 e chegava no início da madrugada, após as seguintes escalas: Galeão, Salvador, Recife, Fortaleza, São Luiz e Belém. (1982)


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Hora do rush em Congonhas, no final dos anos 70, com correria de ônibus lotados de passageiros. Naquela época, para decolar da pista 16R (a atual 17R), as aeronaves
precisavam se deslocar parcialmente pela pista, porque não havia pista
de táxi até a cabeceira.


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Guarulhos, em dois instantes: quando da inauguração da pista 09R (foto: Jornal Folha da Tarde), e o CJP na final, pouco tempo depois do início das operações domésticas, em
agosto de 1985. Nota: a primeira aeronave comercial que pousou na pista 09R de GRU foi o A300 da Vasp, PP-SNL, às 10:18, do dia 15/12/83, transportando 240 convidados. Em seguida veio o protótipo do Brasilia, que realizou o seu primeiro pouso fora do Centro de Testes de São José dos Campos (fonte: Jornal Folha da Tarde).


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Foto: JGR

Charlie-Juliet-Torto no terminal 1 de Guarulhos, onde se concentravam as operações da
Varig-Cruzeiro na década de 80. Pela parte da manhã era mais comum observar os 737 estacionados nas posições remotas Golf.


A ocupação com destino a Campo Grande era muito boa e serviam o café da manhã nessa etapa de 90 minutos. Partindo de Congonhas, a rota empregada por muitos anos era um pouco
diferente da que é utilizada atualmente, principalmente durante a subida, que seguia em direção a Sorocaba e após rumava para o NDB 380 de Bauru.

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Depois de partir de São Paulo, seguindo pela rota do vôo, por um bom tempo somente em Manaus havia aproximação ILS e, alguns anos depois, controle radar de terminal. Pelas aerovias,
com exceção da área do CINDACTA I (Brasília), o controle era feito na base de transmissão de mensagem de posição. Felizmente, a meteorologia freqüentemente colaborava para que fosse possível pousar com referências visuais em vários lugares. Essa condição de tempo favorável também
contribuía para que avistássemos de surpresa aeronaves sem contato rádio com o controle de tráfego aéreo, como no caso de Campo Grande, envolvendo aviões operando em Teruel Ipanema. O mesmo problema de falta de comunicação e coordenação compulsória era comum em Goiânia, Marabá,
Imperatriz, Uberlândia ... enfim, em tudo quanto era canto, e uma vez ficamos tão perto de um Cessna Skylane, que foi possível visualizar o seu prefixo. No caso de vôo em condições por instrumentos, nesse trecho entre São Paulo e Campo Grande, executávamos um procedimento de descida baseado no antigo VOR, o 114.5. enquanto nos 25 minutos de solo em Campo Grande o pessoal da companhia procurava de forma ligeira administrar a considerável movimentação de embarque e desembarque de passageiros e
bagagens, um dos dois pilotos descia para fazer a inspeção de trânsito da aeronave.

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Pausa para descanso, de janela aberta para entrar um pouco de ar puro ... e quente.

Procurando o caminho...

Num momento de baixo movimento de tráfego aéreo e utilizando a pista 06 para decolagem, o táxi em Campo Grande não durava mais do que 5 minutos. Dependendo da época, o trajeto
entre essas duas cidades era feito com a visibilidade prejudicada pela forte fumaça das queimadas ou desviando de grandes formações convectivas, principalmente à tarde, na viagem da volta. O VOR-DME de
Cuiabá nem sempre estava em funcionamento, restando apenas um NDB para orientação. O interessante é que nos anos 80, mesmo com a chegada dos jatos para os vôos domésticos na década anterior, em muitos lugares a infra-estrutura aeronáutica ainda era deficiente em vários aspectos, que
exigia meios alternativos de navegação. Mas se o Junker W-34 chegava, por que o 737 não chegaria? Por exemplo, para navegar nessa terceira perna do vôo, até o radar meteorológico* poderia ser usado como recurso de auxílio no controle de distância para o destino, pelo menos para o cálculo de ponto de início de descida. Ao abaixar a antena podíamos fazer o mapeamento do solo, que facilitava a identificação da grande Baía de Chacororé, distante aproximadamente 40 milhas do aeroporto.
Quando possível e com vento favorável, o pouso ocorria de forma direta, após a interceptação de uma longa final da pista 34 (a atual 35).

Cuiabá...

Nem todos os aeroportos que operávamos possuíam um Despachante Operacional de Vôo (DOV), que era a pessoa encarregada de apresentar aos tripulantes o planejamento do vôo. Na verdade, com o passar dos anos, essa prestação de serviço foi sendo desativada, por causa do corte de custos e da implantação de sistemas automatizados. Muitos profissionais de altíssima qualidade foram remanejados. Outros, infelizmente, demitidos. A cada dia que passava iam desaparecendo os bons tempos do bate papo antes da saída do vôo, entre os pilotos com aquele que havia se encarregado de pesquisar pelas
melhores opções de vôo e desempenho. No vôo 484, os tripulantes recebiam o que era chamado de “documentação” (que incluía, entre outras coisas, a navegação, notams e os dados meteorológicos) no Galeão, para o trecho até São Paulo; em Congonhas ou Guarulhos, para as pernas de Campo Grande
e Cuiabá; e em Cuiabá, um time de DOVs muito bom apresentava detalhadamente os dados relacionados às demais etapas.

O procedimento de decolagem tornava-se mais crítico quando a temperatura do ar estava acima dos 30 graus C no horário de saída, principalmente com lotação máxima de 109 passageiros, 6
tripulantes, eventuais caronas (os aviões da Varig podiam levar mais duas pessoas no jumpseat na cabine de comando e os da Cruzeiro apenas uma), mais (muita) carga e bagagens. Como era uma etapa razoavelmente longa e com escassas alternativas, os tanques de combustível seguiam
relativamente cheios. Dentro desse cenário, a análise de decolagem deveria ser cuidadosamente bem avaliada, para aproveitar o máximo de desempenho da aeronave naquela configuração. O táxi – pela pista, pois não havia taxiway – era feito com cautela, para não superaquecer os freios, e usávamos os reversores dos motores para ajudar na desaceleração, que deixava o 737 com um ronco no estilo de um Muscle
Car. Em muitas circunstâncias era preciso empregar o uso de sangria de ar da APU para o ar condicionado, que propiciava um pouco mais de potência aos motores, e com o avião configurado dessa forma era nítida a mudança de tom da orquestra dos 2 Pratt and Whitney JT8D-17A.

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Dados de decolagem de Cuiabá num dia com a aeronave pesada. As correções +.03 e -.01, acima dos valores de EPR, referem-se, respectivamente, ao adicional de potência disponível
em caso de decolagem sem sangria de ar do motor e penalidade no caso de
uso de Gravel Protect, que era um dispositivo que ficava próximo do bocal da turbina e contribuía para “limpar a área” e evitar ingestão de detritos.


Com o avião alinhado e com a decolagem autorizada, o coração começava a bater mais acelerado a cada valor adicionado de EPR nos motores. O 737 percorria a pista de Cuiabá por uma
boa extensão, como se estivesse partindo para um longo vôo transatlântico. Porém, diferente do que vem ocorrendo de um bom tempo para cá com a reputação de outras aeronaves, no caso do Boeing 737-200,
mesmo operando dentro do que havia de limites mais restritos, jamais soube que um passageiro sentiu-se inseguro de alguma forma, mesmo quando o ruído era aumentado por causa da permanência do trem de pouso estendido por alguns minutos, como forma de refrigeração complementar em
vôo. A relação de confiança com aquela aeronave ultrapassava qualquer fronteira, tanto lá trás como na cabine de comando.

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Um tributo à Pratt and Whitney: apesar de pertencer a uma das primeiras gerações de motores turbofan, o JT8D pode ser considerado como um grande exemplo de confiabilidade. Era
raro ouvir casos críticos envolvendo esse motor, como o apagamento em vôo ocasionado por alta ingestão de água, como ocorreu no princípio da operação com o B737-300 – um avião que acabou recebendo o merecido apelido de “Cascão” quando chegou ao Brasil – com seus CFM56. Além disso, é impossível imaginar um B737-200 sem associá-lo com a magia do seu famoso e infernal barulho.



O dia a dia de uma etapa de longa duração...

Em primeiro lugar, vamos falar do serviço de bordo:

Os longos vôos internacionais – nos B707, B747 e DC-10 – possuíam um serviço de renome e eram, portanto, outro departamento.

Na rede doméstica e pelo Cone Sul pode-se dizer que havia muito mais fartura e qualidade do que
encontramos atualmente. De um modo geral, pelo Brasil, cada base e vôo tinham suas peculiaridades de fornecimento. Alguns eram tão tradicionais que viravam rotina e era fácil prever o que embarcaria. Por muito tempo no Galeão tínhamos o Rondelli (no almoço, jantar, ceia, café da manhã,
aperitivo e o que sobrava ainda ia para o refeitório dos funcionários).
Por causa da repetição, essa massa foi banida do cardápio lá em casa desde os anos 90. Em São Paulo embarcava invariavelmente frango (seco) ou carne (dura) e de sobremesa, um trio de fatias de mamão, melão e abacaxi (secos e duros). Falando em sobremesa, a de Brasília era “tiro e
queda”, e lá estava a dupla sertaneja “cocada e brigadeiro”. Em Porto Alegre, o sagu com creme na cobertura. Em Belém, o bombom de cupuaçu. Em Manaus, doce de cupuaçu. Em Rio Branco, alguma variação usando cupuaçu.
Em Buenos Aires, não tinha cupuaçu, mas massa folhada com doce de leite, tão ou mais calórica que um melado de cupuaçu. Isso sem falar da famosa Tapioca, que não era tapioca*.

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Bombom de cupuaçu ... pegue antes que acabe. (1980)

Voar o 737 era uma vida de altos e baixos, isto é, de decolagens e pousos ininterruptos. Para o pessoal da
frota, vôos longos eram todos aqueles com mais de uma ou uma hora e meia
de vôo, inclusive, para saber se um co-piloto estava apto para voar solo, o cheque consistia de uma etapa São Paulo-Rio: se conseguisse pilotar, almoçar, preencher os documentos da companhia e ainda levantar
para fumar um cigarro na galley, estava aprovado (é importante salientar
que por muito tempo era normal fazer a ligação dessas duas cidades entre 40 a 50 minutos ... calço a calço) . Portanto, numa aviação que dançava no ritmo “decolar-pousar-escrever”, numa etapa longa, como entre Cuiabá e Rio Branco, sobrava tempo para pelo menos mastigar duas vezes o
bife antes de engoli-lo. Mas enquanto a hora da bóia ia da cabine de comando até a fileira 19 (que era a última), era necessário dividir uma garfada com os desvios e com os cálculos para manter a rota devida,
porque as indicações de distância de Cuiabá, quando esse equipamento estava no ar, não iam além de 200 milhas (obs: a distância total até Rio Branco era de mais de 700 milhas) e a marcação de radial do VOR não cumpria mais do que um pequeno papel no gerenciamento para manter o eixo da aerovia.

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Um dos métodos complementares de controle de navegação era utilizar os auxílios de Vilhena, contudo, eles geralmente estavam fora do ar. Até o início dos anos 90 não havia no Boeing 737-200 apoio de sistemas auxiliares, como inercial e ômega, e FMC e GPS somente faziam parte de filmes de ficção científica. Por muitas jornadas o sistema usado no Paulistinha – proa e tempo – era o
que restava. Sim, havia outro dispositivo, que era utilizar freqüências de rádio AM, que exigia ouvir um pouco de música sertaneja, depois uma daquelas boas de arrasta-pé e, por fim, a leitura do horóscopo, até que o narrador identificasse a estação durante o momento do comercial, para, então, confirmar se a indicação do ponteiro do ADF fazia algum sentido ou ele apenas estava mostrando onde se encontrava o CB mais próximo. Com ventos de intensidade variável e geralmente de través que predominavam
pela região, não era surpreendente descobrir que o avião estava involuntariamente fora do centro da aerovia quando mais adiante começava a surgir um sinal de vida do VOR Riberalta, na Bolívia, que ficava (ou pelo menos deveria ficar) na lateral esquerda da rota. O VOR-DME de Rio
Branco era bem precário e nem sempre confiável, e somente era possível receber informação de distância a partir de poucas milhas do aeroporto, quando o ponto ideal para o início de descida tinha ficado (bem) para
trás. Não é preciso fazer muito esforço para imaginar que o espaço aéreo boliviano foi invadido além da conta em diversas ocasiões. Vale lembrar que o contato com o centro de controle de Porto Velho, via HF, também não era o melhor exemplo de efetiva comunicação bilateral.

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Em destaque está a aerovia UW7, utilizada entre Cuiabá e Rio Branco. Havia limitação de níveis
disponíveis para cada lado, devido ao cruzamento pelo meio do caminho com outras rotas. Numa viagem restrita no FL 290, durante um vôo 485, observei pela primeira vez a formação de gelo nas asas do 737, durante a entrada de uma frente fria vinda dos Andes. Nessa carta também é
possível notar que naquela época ainda não havia um centro de controle único, como o Amazônico, mas uma distribuição entre Campo Grande, Porto Velho, Manaus e Belém, e que alguns auxílios essenciais à navegação, como o NDB RON e o VOR RBT, poderiam estar fora de serviço, sem aviso prévio.


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A Varig emitiu uma carta de navegação que servia de orientação para eventualmente fazer vôos diretos em certos trechos. Adicionalmente, alguns pilotos possuíam os seus “kits” particulares, que poderiam incluir um mapa da revista 4 Rodas ou um simples atlas geográfico escolar, que ajudava a identificar rios e cidades, quando as condições meteorológicas permitiam. Além disso, havia o sistema digital e rotativo – o Computador da Jeppesen – que ajudava a
não descobrir qual era a intensidade e a direção do maldito vento lateral. Era compacto, como um moderno telefone celular. E o motivo de ser o modelo CR2 era exatamente esse: cabia no bolso da camisa Alfred, que era a fornecida pela companhia, porém, não funcionava
quando mais precisávamos. Esse recurso de última geração também era usado por um pessoal do B707 e DC-10 nos seus vôos, claro que entre um caviar e outro.


Como comentado anteriormente, o período das queimadas, que muitas vezes se estendia por vários meses,
comprometia consideravelmente a visibilidade. Isso era tão agressivo à natureza e às operações aéreas, que durante um tempo os pilotos receberam formulários para preencher e ao mesmo tempo deviam informar via rádio focos de incêndio. Entretanto, se não era a névoa acinzentada,
eram os incômodos CBs em sua plenitude, atravessando o período da tarde.

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“CB no céu, aviador no hotel”.
Na prática, esse ditado é pura lenda. A aerovia UW7 parecia em certas
ocasiões uma pista de corrida com obstáculos. Às vezes um CB estava
desaguando bem em cima do aeroporto de destino. O limpador de pára-brisa
na vertical era de uso rotineiro na operação no 737-200. Não havia
consenso: alguns pilotos diziam que deixado assim o barulho na cabine
era menor, outros alegavam que na posição horizontal, que seria o
previsto, ele ficava exatamente no ângulo de visão na hora do
arredondamento, durante o pouso. De qualquer forma, na vertical ou na
horizontal, em caso de pouso brusco, o culpado era o limpador.


Às vezes cruzávamos com o 485 “descendo”, e de um lado ou do outro alguém tomava a iniciativa e falava
pelo rádio “Antiga” (que era para chamar na freqüência 129.0, utilizada
pelo pessoal da Cruzeiro) ou “Escolinha” (133.30, por parte do grupo da
Varig), com a intenção de conversar, trocar informações pertinentes a respeito da rota ou para saber da “última”, pois quem estava voltando estava desatualizado e quem subia possuía as notícias fresquinhas.
Opcionalmente, havia a “Galo”, 125.52 (sim, tinha gente que fazia um “cocoricó” na fonia para chamar nessa freqüência), a 130.55, que era aquela estabelecida oficialmente para comunicações ar-ar, antes da
formalização do 123.45, que por sinal também vinha sendo informalmente empregada havia anos.

Além da deficiência de auxílio em solo para a navegação, para obter boletins meteorológicos a melhor coisa era chamar a companhia em HF. Mesmo com a tradicional chiadeira peculiar das
comunicações nessas freqüências de rádio, era razoavelmente fácil ser atendido, porque havia estação-rádio em várias bases da companhia, como em Porto Alegre, Navegantes, Belém, Manaus e Recife. Porém, como ocorreu
com os DOVs, tudo foi sendo desativado, restando por último somente a do Rio.

Enquanto os pilotos estavam entretidos tentando descobrir se estavam mais prá lá ou mais prá cá rota, na cabine de passageiros acontecia de tudo um pouco. Então, vejamos: de entretenimento não havia praticamente nada, além da leitura de jornais que embarcavam em todas as escalas e de algumas revistas que haviam sido colocadas a bordo no Rio ou em São Paulo, e às vezes sobrava uma
Manchete, que passava de mão em mão no decorrer das etapas. O fumo era permitido, e invariavelmente uma densa fumaça tomava conta do interior da aeronave (obs: por muitos anos, pelo menos até a década de 70, algumas empresas forneciam de cortesia uma pequena caixa contendo cigarros, além de fósforos para acendê-los). Havia filas em frente aos banheiros, isso quando um passageiro não abria a porta da cabine, que geralmente não ficava trancada, pensando que ali era o local para o alívio, inclusive, para saber como andava o padrão do catering, sobrava para o comandante o cheque de olfato do toilete dianteiro, porque sei lá qual era a razão, mas de vez em quando surgia um cheiro insuportável
vindo do lado esquerdo da cabine de comando ... e era hora de usar a máscara de oxigênio.

Quando mais da metade do avião estava em pé, o chefe de cabine tentava botar ordem, mas nem sempre surtia efeito. Um recurso era ligar o aviso de atar cintos, mesmo sem a presença de turbulência. As visitas à cabine de comando eram liberadas, e às vezes alguém era convidado para ficar por lá até o pouso, como foi o caso de uma atriz da TV Globo, que, no fim, autografou o meu quepe.

E para agitar o que já estava bagunçado, um grupo musical de samba em turnê pelo Brasil eventualmente ficava perambulando a bordo e distribuía aos tripulantes ingressos para os shows, normalmente para localidades que não seriam os nossos pernoites.
Ainda bem.

Nem tudo que era ruim não poderia ficar pior... (a respeito da infra-estrutura)

Se alguém sentisse aqueles efeitos infalíveis pós-almoço, como as incontroláveis cabeçadas de sonolência no anteparo do painel, o pouso no antigo aeroporto de Rio Branco despertava qualquer um. Podia ser a pista 20, cruzando o Rio Acre, ou a 02, de qualquer forma, deslizar pelo asfalto (?) os 6 pneus da Goodyear
não era exatamente aquilo que todos os pilotos gostavam de oferecer aos seus passageiros. O pavimento era relativamente parecido com um percurso de mountain bike, que virou motivo de encrenca para um comandante após os seus comentários em forma de “boas vindas” pelo alto-falante. Nesse
dia, havia uma importante personalidade a bordo, que notificou a companhia e pediu a cabeça do nosso colega aviador. Quanto ao que seria o mais importante – lutar pelo conserto da pista – tudo ficou do mesmo jeito, por muitos anos.

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Foto: JGR

Pista 02 do antigo aeroporto de Rio Branco. As manchas escuras não são sujeiras na imagem, mas fumaça de uma chaminé colocada estrategicamente ao lado da pista. Se uma
aberração como essa não bastasse, ainda havia pelo país o risco de encontrar, numa aproximação final para pouso, balões juninos ou urubus ... ou tudo ao mesmo tempo.


Em Rio Branco mais da metade da viagem havia passado. Encontrávamos pela área o Vasp 382, que fazia um percurso relativamente parecido com o nosso, mas ele voava primeiro de Cuiabá para Porto Velho, para depois seguir a Rio Branco e Manaus.

Prosseguindo a Porto Velho, numa viagem de 40 minutos de vôo, às vezes era necessário efetuar alguns desvios meteorológicos e encontrávamos turbulência térmica desconfortável, antes
de uma chegada visual com base pela esquerda, cruzando o rio Madeira, para a pista 36 (a atual 01). Quando possível procurávamos aproveitar o máximo do desempenho do avião, planejando a descida para “dar motor” somente abaixo de 500 pés, geralmente vindo numa descida usando a
velocidade máxima indicada, que alguns chamavam de “Embu ...”, algo como entre 350 a 360 nós, até a entrada no circuito de tráfego.

Cruzeiro 484 20a
Operar visual era comum nos vôos amazônicos. Nessa foto entrávamos no circuito de tráfego de Tabatinga, na fronteira com a Colômbia e Peru, realizando o vôo SC884, com destino a
Iquitos. A pista está à esquerda, nas proximidades da margem do Rio Amazonas.



Last but not least...

A maratona aérea começava a cobrar o seu preço em forma de cansaço no trecho com destino a Manaus, que era feito em uma hora e dez minutos, em média. Dependendo do dia, “deitando o
cabelo” (voando o mais rápido possível) dava para tirar um pouco do tempo de vôo ou atraso. Em certos casos, mesmo reduzido, era difícil cortar as paredes de CBs, no entanto, pelo menos nesse momento de muito balanço os incansáveis comissários conseguiam um pouco de trégua, pois era também uma dureza esse vôo para eles.

Mas depois de voar o dia inteiro, encontrar o destino com condições meteorológicas adversas não era
exatamente a melhor coisa que poderia acontecer. O pior ainda seria alternar. Uma vez orbitamos ainda longe de Manaus, porque foi o único buraco encontrado sem formações pesadas para esperar uma forte
tempestade passar.

Numa tarde de tempo bom ainda dava tempo para fazer o sobrevôo do Encontro das Águas ou chegar numa base pela direita e passar na vertical do Hotel Tropical, para observar rapidamente o movimento na piscina.

Cruzeiro 484 21a
Panorâmicos, entre eles, o Hotel Tropical. Para pousar na pista 10 de Eduardo Gomes é só virar à direita. E para ir ao Cadeirada* também é só virar à direita ... mas andando.

Quanto ao hotel de pernoite, não era surpreendente tomar uma ducha de água fria ao abrir a porta do avião, quando éramos informados que ele estava lotado por causa de uma convenção qualquer, e só havia disponibilidade no hotel X. Às vezes nem o X e nem o Y estavam disponíveis, e teve tripulação que foi parar no motel Z. Motel? Isso mesmo, porque era o único lugar que possuía vaga (com cama, mesmo que redonda) na cidade ou a opção seria o banco do aeroporto (geralmente retangular e sem espelho no teto), até encontrar disponibilidade de quarto.

Com a aeronave estacionada, gastávamos um tempinho para finalizar e guardar a documentação do vôo, enquanto os comissários completavam suas tarefas. Com a tripulação reunida,
passávamos pelo setor de desembarque, onde os últimos “até logo” e “obrigado” eram ditos pelos passageiros que aguardavam suas bagagens. Muitos deles haviam viajado conosco durante 3 ou 4 etapas e quase se tornavam amigos (Ops! Nunca soube de alguma pessoa que saiu do Rio ou SP
e seguiu até Manaus. O FCanteras era muito novo ainda). Caminhávamos em direção ao ônibus que nos levaria ao hotel sob os olhares curiosos da grande aglomeração que ficava aguardando os familiares e amigos. Nessas horas, a sensação de dever cumprido era bem prazerosa.

Fim de vôo, proa do Cadeirada à noite ou de um churrasco no Tropical, numa mesa com pelo menos uns 10
tripulantes reunidos, e pré-aquecimento para o Lapinha*, no caso de continuar para Belém.

Do Rio a Manaus: mais de 4.400 km, com 6 pousos...

É claro que tudo que foi relatado poderia sofrer variações e desdobramentos diversos, mas independente
disso, os anos da existência do vôo Caravana do Oeste* foram recheados de períodos de razoável estabilidade na malha da empresa, mesmo quando apresentou algumas alterações de horário, destinos (saiu Congonhas, entrou Guarulhos) e inclusão ou remoção de escalas, dependendo do dia,
quando nesse caso a numeração do vôo era alterada para SC482, com um pouso em Cruzeiro do Sul, por exemplo.

Para os tripulantes, essa chave de vôo teve algumas flutuações que acompanharam as oscilações de humor dos Departamentos de Tráfego e Escala. Desdobravam o vôo e botavam um pernoite no meio, como em Cuiabá, muito agradável por sinal. Ficamos também em Rio Branco, no famoso Inácio “Parece” (Palace) Hotel, onde muitos peixes comprados em Santarém foram assados na volta do SC485. Em
vários momentos o SC484 era o princípio de uma chave de vôos que mantinha os pilotos por 5 dias na região norte, ou eles apenas subiam num dia e voltavam na manhã seguinte, no SC485 – isso mesmo, um pequeno descanso antes de fazer tudo de volta. Por um tempo a movimentação de pessoal em Manaus era tão grande, que havia um D.O. instalado dentro do Hotel Tropical.

Cruzeiro 484 22a
Outro Cruzeirinho voando pela Amazônia, em Tefé, numa rota que havia sido explorada pelos PBY-5A Catalina e DC-3. O “November” foi o primeiro 737 que a companhia
recebeu, em janeiro de 75. No momento dessa foto, a França vencia o Brasil nos pênaltis, na Copa de 86, no México. Enquanto eu fazia a inspeção externa, os demais tripulantes e os passageiros estavam acompanhando o jogo pelo rádio de um despachante. Mesmo perdendo, teve cervejada em Manaus.



Quando o Sol se pôs...

E o mundo continuou girando, de forma conturbada, como sempre, e em meados dos anos 90 surgiu uma determinação do DAC que acabou com uma tradição, que foi a implantação da designação
de quatro dígitos aos vôos das companhias aéreas brasileiras. E foi o fim do 484.

Todavia, o difícil mesmo foi um dia acordar e descobrir que não somente os números conhecidos de vários vôos não existiam mais, porque também foram juntos, desaparecendo como o sol
num final de tarde, o QD da Transbrasil, o VP da Vasp, o RG da Varig e o SC do “Syndicato Condor”. E quando anoiteceu, a Xepa* foi abandonada num canto qualquer. Acabaram os churrascos e os rachas de vôlei com o pessoal da Vasp em Macapá. O Cadeirada, que pena, perdeu boa parte da sua antiga e fiel clientela, e dizem que o Lapinha ficou mais calmo do que nunca. A “Antiga”, a “Escolinha” e o “Galo” se emudeceram, e alguém deve ter avisado a Iris Lettieri que sua voz não precisaria mais
anunciar a “última chamada para embarque no portão 5” de um vôo daquelas grandes empresas. Nunca mais alguém ouviu na fonia em Congonhas alguém solicitando um “Tráfego Paulo, esse é o Cruzeirinho 484, pronto para a cópia, câmmmbio ...” ou ficou sabendo de alguém que caiu da cama
com a trepidação do Tropical, quando um 485 passou rasgando a 300 pés, a
mais de 250 nós, após ter sido autorizado a decolar da pista 28, com curva à esquerda na proa de Porto Velho. Isso hoje em dia daria CPI no Congresso e faria o Datena se estatelar no chão durante o seu programa.

Paralelamente aos acontecimentos, o Boeing 737-200 também foi deixado de lado. Ele havia surgido exatamente com a tarefa de substituir com toda a sua evolução várias aeronaves obsoletas. Porém, esse versátil avião um dia também atingiu o seu limite, a sua importância, o seu prazo de validade.

E daquele tempo restam apenas lembranças. Mas não é difícil imaginar que com a dinâmica natural da
atividade aérea, tudo que motivou uma geração a crescer, respirar e vibrar acabe gradativamente caindo no esquecimento, e dessa forma não será surpreendente constatar, quando esse e muitos outros causos forem contados daqui alguns anos aos jovens que estarão entretidos, quem sabe,
com vôos interplanetários e com os slots de Congonhas para a Lua, que poucos talvez esbocem algum interesse em saber que a bordo de um avião que possuía um objeto de nave alienígena chamado de gravel protect eram servidos bombons de cupuaçu e tapioca*.

Cruzeiro 484 23a
Notas e termos do cotidiano...

1. Com o passar do tempo o B737-200 sofreu atualizações no seu sistema de navegação. Alguns dados aqui apresentados estão baseados em fases mais rudimentares. De qualquer
forma, nem sempre havia o suporte necessário, principalmente quando alguns itens não eram mínimos para o despacho da aeronave.

2. A infra-estrutura aeroportuária e alguns momentos descritos misturam-se com que havia (ou não havia) no final dos anos 70 e parte da década de 80 até o início dos anos 90.

*Radar Meteorológico (ver Stevie Wonder)– Outra “utilidade” desse equipamento, além do controle de distância, era de identificação de tráfego, algo como um “TCAS” do tempo do arco e flecha. Muito antes da criação desse sistema de alerta era comum dar uma olhada na tela e procurar, a cada varredura da antena, por um ponto que seria o suposto tráfego essencial informado pelo órgão ATC.

*Tapioca – em alguns vôos era servida aos passageiros uma pequena toalha branca aquecida e enrolada para limpar as mãos antes de começar o serviço de bordo. Alguns incautos confundiam aquilo com tapioca e enfiavam na boca para tentar mastigar.

*Caravana do Oeste – também conhecido como Mata-Bicha.

*Stevie Wonder (foto) – apelido politicamente incorreto que foi dado ao radar Bendix dos aviões da
Cruzeiro. As aeronaves da Varig eram equipadas com outro modelo, de outro fabricante, mas com seu alcance mínimo de 50 nm, fazia um ótimo dueto com o Stevie.

Cruzeiro 484 24a
*Cadeirada – um restaurante bem pé sujo (pelo menos na época), mas era a opção mais barata para economizar diárias de alimentação. Era servido um peixe boiando no óleo acompanhado
de cerveja mais em conta. Ficava próximo do Hotel Tropical, e segundo a
lenda ele recebeu esse apelido após um quebra-quebra envolvendo tripulantes de uma determinada empresa aérea :lala: e a nobre freguesia.

*Lapinha – um aprazível ambiente visitado pelos tripulantes durante os pernoites em Belém. Muitas primas,
danças e bebidas. Um quebra-quebra podia retomar o agito no caso de um eventual momento de calmaria, para, portanto, iniciar a segunda rodada de primas, danças e bebidas ... até começar outro quebra-quebra.

*Xepa (foto) – Apelido que recebeu uma mochila que a APC (Associação de Pilotos da Cruzeiro) dava de presente aos seus associados. Servia para muitas finalidades. Tinha o tamanho exato para carregar o velho manual de capa branca e verde de sistemas do
B737, mais o QRH, porém duvido que um dia tenha sido utilizado dessa forma. Com jeitinho, garanto que cabiam pelo menos 20 latas de cervejas para um bom happy-hour com as colegas. Entrar no D.O. ou fazer troca de tripulação com a Xepa a tiracolo geralmente motivava uma cara de “... ihh, lá vem o pessoal da Cruzeiro ...” por parte dos Variguianos. A minha Xepa, caminhando para três décadas de aerovia, ainda encontra-se em bom estado.

Cruzeiro 484 25a
PP-CJP...

Cruzeiro 484 26a
Boeing 737-2C3: L/N 397 e S/N 21014 (Selcal: AB LM)
Primeiro vôo: 03/02/75 Entrega: 13/02/75


Em 94 foi pintado com as cores da Varig e
retirado de serviço em 99. Seu próximo operador foi a companhia
Magnicharters, do México, recebendo o prefixo XA-MAC. Durante um pouso
em Guadalajara, em setembro de 2007, sofreu severos danos e foi
considerado irrecuperável.


Verificando algumas anotações...


Cruzeiro 484 27a

Boeing 737-2C3: L/N 397 e S/N 21014 (Selcal: AB LM)
Primeiro vôo: 03/02/75 Entrega: 13/02/75

Em 94 foi pintado com as cores da Varig e retirado de serviço em 99. Seu próximo operador foi a companhia Magnicharters, do México, recebendo o prefixo XA-MAC. Durante um pouso
em Guadalajara, em setembro de 2007, sofreu severos danos e foi considerado irrecuperável.


Verificando algumas anotações...

Cruzeiro 484 27a
Fiz parte da tripulação titular do primeiro SC485 que passou por GRU. A respeito dos vôos do norte, contei
em mais de 6 anos voando o -200, pelas duas empresas, 216 pousos ou decolagens em Manaus. Considerando que operei por aquele período por mais de 50 destinos, é possível notar como era freqüente a presença do pessoal desse equipamento por aquela região. Somente de vôos 484/5 foram
62 no total, mais alguns, em deslocamento a serviço, indo e vindo de Rio Branco.

Levando em conta que as duas companhias juntas tiveram em uso por um bom tempo 18 aeronaves do modelo B737-200, posso considerar que foi muita coincidência fazer não somente o meu
primeiro vôo, mas também o último como co-piloto da Cruzeiro a bordo do CJP. Como se isso não bastasse, retornando ao 737 para iniciar a instrução para comando, lá estava ele de novo, no meu primeiro vôo. O
nosso último contato foi no dia 30/12/93, de Belém para Manaus, com escalas em Santarém e Trombetas. Haveria outra coincidência? Sim, aquela seria a minha última programação como comandante de B737-200.

Logo depois ele recebeu a pintura da Varig. No entanto, sempre achei que aquele uniforme nunca combinou com um 2C3. No final, fizemos juntos 164 etapas e 215 horas

Cruzeiro 484 28b

Fonte: Contato Radar





Última edição por Amilckar em Ter 15 Nov 2011, 13:21, editado 1 vez(es)

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Mensagem por Augusto Sposito Ter 15 Nov 2011, 13:13

Uau! aplauso reverencia
Mais um post nota 100! Yesyes
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Mensagem por Edenio Rodrigues Ter 15 Nov 2011, 13:23

Uma bela reportagem, obrigado Amilckar, aceite mais um pontinho thumbsup , abraços

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Mensagem por Alexandre da Silva Ter 15 Nov 2011, 13:31

Um post daqueles de ensinar muita coisa, parabéns Amilckar.

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Mensagem por Alvega Ter 15 Nov 2011, 14:48

Muito bom, Amilckar. Good post

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Mensagem por rodrigo mago Ter 15 Nov 2011, 15:13

Show de post, ponto pra vc! Muito bom mesmo!!
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Mensagem por Amilckar Ter 15 Nov 2011, 15:48

Qdo postei pensei logo no Seu Edênio realizando esse voo Cruzeiro 484 652185

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Mensagem por Edenio Rodrigues Ter 15 Nov 2011, 16:28

Amilckar escreveu:Qdo postei pensei logo no Seu Edênio realizando esse voo Cruzeiro 484 652185

Realmente amigo, sempre fui apaixonado pela Cruzeiro do Sul, nome apropriado para uma companhia aerea.
Tenho um Caravelle no hangar e gostaria muito de simular o inesquecivel vôo Recife/Cidade Maravilhosa. Yesyes
A dificuldade será pousar no Santos Dumont, com pista excessivamente curta, para quem faz simulação (se soubesse mexer com cenario, adicionaria mais umas centenas de metros) Very Happy , abraços

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Mensagem por Barba Ter 15 Nov 2011, 17:24

Excelente Post, Amilkar.

Lembrei agora de muitos vôos que fiz nas asas do 732, entre 85,86 e 87.

Saudades daquele tempo em que se ia ao avião caminhando pelo aerporto e sentindo o cheiro incofundível do querosene no ar.

Mais um ponto p/ vc.
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Mensagem por flavioSSA Qua 16 Nov 2011, 11:15

Linda história! Valeu por postar!
Sabem se existe algum livro que conte essas histórias sobrea aviação no Brasil na "época de ouro"?

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Mensagem por G.Friedrich Qua 16 Nov 2011, 11:21

Que post sensacional. reverencia
Vale um ponto sem duvida.

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Mensagem por flavioSSA Qua 16 Nov 2011, 15:41

Amilckar
Só por causa desse seu tópico, comprei hoje o livro "Breve História da Aviação Comercial Brasileira" do Aldo Pereira. Fiquei com vontade de saber mais sobre esses anos da nossa aviação. Valeu mesmo!

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Mensagem por andre_sp Qui 17 Nov 2011, 13:56

Excelente post, Amilckar reverencia

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Mensagem por el_lopes Qui 17 Nov 2011, 15:59



Excelente post... aplauso aplauso

Esta sobre a "xepa" eu axei muita graça..
..... "porém duvido que um dia tenha sido utilizado dessa forma. Com jeitinho, garanto que cabiam pelo menos 20 latas de cervejas para um bom happy-hour com as colegas"

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Mensagem por Jacsantana Sex 18 Nov 2011, 09:57

Bom trabalho, Amilckar thumbsup

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Mensagem por VSP4264 Sáb 03 Dez 2011, 20:59

Um dos melhores posts (desde o original no contato radar) já vistos sobre aviação comercial Brasileira e que família era a CRUZEIRO hein!

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